Com o tema acima, eis o artigo de Norman Gall, diretor do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Este artigo é adaptado de ‘Ceará vai à escola’, publicado em Braudel Papers, jornal de pesquisa e opinião do instituto, que foi publicado no Estadão:
Silencioso e invisível, o espírito de William Shakespeare entrou na velha casa de Antonio Conselheiro, na praça principal de Quixeramobim, sertão do Ceará. Foi recebido por estudantes da escola profissionalizante do ensino médio da cidade. Sentados no chão da casa, num Círculo de Leitura, os alunos leram em voz alta uma tradução de Macbeth ao português. A seguir, assistiram às mais famosas adaptações da tragédia (ao cinema, por Orson Welles, e à ópera, escrita por Verdi). Inspirados pela leitura, encenaram a peça eles próprios no auditório da escola, usando trajes medievais improvisados. Depois, era hora de unir o universo shakesperiano à cultura política do sertão. Como? Contemplaram uma adaptação sertaneja de Macbeth, com roupa e costumes das brigas de clãs. Nessa versão, o rei Duncan seria o prefeito da cidade, mandando até ser assassinado. Os nobres seriam os fazendeiros, e os soldados, os capangas. As feiticeiras surgiriam dos arbustos secos e torcidos da caatinga, em vez de sair da névoa gelada das planícies da Escócia, para gritar suas profecias enganosas, envenenando os pensamentos dos homens ambiciosos.
A invocação de Shakespeare em Quixeramobim – na antiga casa onde nasceu o protagonista da guerra de Canudos, hoje transformada em centro cultural – faz parte de um projeto que leva leituras clássicas a escolas públicas há 16 anos. São os chamados Círculos de Leitura, programa do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, que leva o teatro de Shakespeare e outros clássicos da literatura para discussão por grupos de 10 a 15 alunos, em escolas públicas de 35 municípios do Ceará. O programa, que surgiu na periferia da grande São Paulo, já foi levado a escolas da Bahia, Minas Gerais e Pernambuco, provocando com essas leituras e trocas de ideias reflexões sobre os problemas eternos da humanidade.
Como aprenderam os alunos de Quixeramobim, são questões universais, capazes de aproximar lugares tão distantes. O problema da legitimidade política, que marca todas as tragédias de Shakespeare está presente em conflitos que dividem o Ceará. Acaso os alunos já haviam pensado que as guerras de clãs do Ceará são de um gênero que inspira tragédias há séculos, como as shakesperianas Macbeth, Júlio César e Rei Lear? Os mesmos conflitos permeiam as histórias da Guerra das Rosas, que eclodiu na Inglaterra no século 15, entre os clãs de York e Lancaster. Na Verona de Romeu e Julieta, bem como em outras cidades italianas da Renascença, as brigas entre clãs rivais eram tão brutais e sanguinárias que as autoridades municipais cediam poderes de governo a nobres de outras cidades – um podestá, que em geral governava por apenas seis meses, acompanhado por quatro juízes e 24 cavaleiros que ele trazia. Para preservar sua imparcialidade entre as facções rivais, o podestá era proibido de comer ou beber na companhia de cidadãos locais.
Os alunos sabem que os frágeis municípios do sertão nunca puderam se dar ao luxo de contratar um podestá. Precisavam confiar nas duas forças policiais estaduais, que, à maneira dos clãs, raramente cooperavam entre si. A Polícia Militar deve manter a ordem pública, enquanto a Polícia Civil faz investigações. E a rivalidade entre as duas forças é tão acirrada que os governadores frequentemente nomeiam sua própria versão de um podestá – um delegado da Polícia Federal vindo de fora do Estado, encarregado de manter a ordem e conseguir cooperação entre as polícias.
A violência surgia das secas sucessivas que reduziam os rebanhos. Os donos de terras mobilizavam seus bandos de peões e jagunços em disputas que envolviam rivalidades políticas, roubo de gado, conflitos sobre terras, acesso à água e defesa da honra familiar. Camponeses sem terra andavam sem rumo, pedindo comida, trabalho ou um lugar para morar. No meio dessa confusão, bandidagem e movimentos religiosos milenares emergiram como forças poderosas. Os jovens de hoje já ouviam essas histórias.
Histórico de pedagogia. Quixeramobim surgiu há cerca de 300 anos como pequeno vilarejo no cruzamento de trilhas de transporte de gado. Hoje é um município em expansão, com 77 mil habitantes. Jegues e motocicletas se cruzam nas ruas calçadas de pedras. Postos de gasolina, motéis, bares e cantinas e lojas de material de construção enchem os dois lados da estrada que dá acesso à cidade. “Não faz muito tempo, o Ceará era conhecido como terra de anões, porque o povo era desnutrido”, lembra o prefeito Cirilo Pimenta. “Agora, seis mil pessoas aqui recebem aposentadorias, 3.500 são empregados públicos e 11 mil famílias recebem da Bolsa-Família.” Praticamente todos os alunos de escolas públicas no Ceará são de famílias de baixa renda, e recebem esse auxílio.
Nos tempos antigos, Quixeramobim foi uma das poucas vilas do sertão com uma escola primária. Em 1845, só 30 escolas de ensino fundamental funcionavam no Ceará, com apenas 1.332 alunos. Um desses alunos em Quixeramobim era Antonio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), que depois ficou famoso como o pregador itinerante Antonio Conselheiro, líder de milhares de sertanejos que criaram uma Nova Jerusalém, em Canudos, no sertão da Bahia. Com receio de uma revolta popular, o governo da nova República enviou o exército para massacrar Conselheiro e seus fiéis, em 1897, após três tentativas fracassadas de conquistar Canudos, cuja população cada vez maior de devotos causava falta de mão de obra nas fazendas da Bahia.
Essa história foi contada em Os Sertões, de Euclides da Cunha, engenheiro militar que foi repórter da guerra de Canudos para O Estado de S. Paulo, fazendo de Antonio Conselheiro um herói-mártir da literatura brasileira. Nos anos recentes, Quixeramobim reforçou seu legado histórico, celebrando a epopeia de Conselheiro num festival anual. A casa em que nasceu, em que agora os alunos sentam em roda e leem Shakespeare, foi restaurada e transformada em centro cultural. Numa rua comercial da cidade surge o esqueleto do monumento ao herói local, com as paredes decoradas com baixos relevos ilustrando cenas de Canudos. Disputas políticas locais e falta de verba deixam o memorial de Antonio Conselheiro ainda inacabado.
Até a chegada da crise político-fiscal que hoje atinge o Brasil, Quixeramobim e outras cidades do sertão gozaram de prosperidade sem precedentes, com níveis recorde de emprego, concentrado nas faixas de baixa qualificação. O salário mínimo brasileiro duplicou, em termos reais, desde 1999. Taxas de natalidade mais baixas e a ampliação do ensino público ajudaram a reduzir a desigualdade. As famílias pobres passaram a gastar mais, em smartphones, remédios, produtos de beleza, aparelhos domésticos e motocicletas, graças a uma expansão do crédito no País, que começou a encolher nos últimos meses de 2014.
“A ampliação da educação gerou quase 20% do aumento dos salários para trabalhadores de famílias pobres”, explica Naércio Menezes Filho, analista de políticas sociais. “A maior criação de empregos foi para os que recebiam até dois salários mínimos por mês. Para criar empregos de maior qualificação, precisamos melhorar a qualidade da educação, para que as empresas inovem e dependam menos do governo.” As dúvidas sobre a continuidade do fluxo de dinheiro, nos níveis atuais, do governo federal para as cidades do sertão gera um sentimento de fragilidade nas pessoas.
Violência shakesperiana. Não é à toa que, na Macbeth sertaneja imaginada pelos estudantes, o prefeito da cidadezinha acabe brutalmente assassinado. Na última década, o número de assassinatos a bala no Ceará cresceu quase quatro vezes, com dois terços das vítimas sendo homens jovens entre 15 e 29 anos. O auge de matanças fez do Ceará o segundo estado mais violento do Brasil, com 45 homicídios por 100 mil habitantes, cinco vezes maior que a taxa mundial de homicídios, estimada pela Organização Mundial de Saúde em 8,8 por 100 mil pessoas.
Cidades grandes com altas taxas de homicídio são sempre mais pobres em ensino, com dificuldades na gestão da escala de seus desafios. A área metropolitana de Juazeiro do Norte (população: 450 mil) é um empório de turismo religioso e de comércio, com alta renda per capita, mas é também um criadouro da violência e escândalos de corrupção, com baixos níveis de aprendizagem nas escolas. O exemplo mais flagrante dessa distorção é Fortaleza, com 2,6 milhões de habitantes e desigualdades extremas de renda pessoal. O desempenho de Fortaleza em educação está entre os 40% mais baixos entre os municípios brasileiros. O número de assassinatos triplicou desde 2004, o que elevou a taxa de homicídios para 79 por 100 mil, quase todos por arma de fogo, a mais alta entre as grandes cidades brasileiras.
Os padrões de violência no sertão são desiguais. Alguns municípios são tranquilos, enquanto outros sofrem com conflitos políticos e gangues. Uma reportagem de Leonêncio Nossa, no Estadão, documentou 1.133 assassinatos políticos no Brasil de 1979 a 2012, a maioria deles (638) no Nordeste, com crescimento em anos recentes e picos durante campanhas eleitorais municipais. Os municípios são as unidades básicas da política, movida a favores e coerção, especialmente em comunidades pobres que pouco produzem além de votos. As autoridades federais e estaduais mostram pouco interesse em controlar a violência nessas cidades, cujos prefeitos desempenham importantes papéis nas redes de alianças políticas. Assim, não há podestá que resolva.
O aumento dos homicídios no Ceará, e no Nordeste em geral, se choca com a tendência que, ao longo dos séculos, reduziu a violência civil nas sociedades complexas. Nos 800 anos passados, os homicídios na Europa Ocidental, por exemplo, caíram de 80 em cada 100 mil habitantes – parecido com El Salvador e na Venezuela de hoje –, para os níveis atuais, mais civilizados, de uma ou duas mortes por 100 mil.
As lições de Shakespeare sobre legitimidade política e violência, debatidas nos Círculos de Leitura, são relevantes ao futuro da educação no Ceará, que depende da melhoria da ordem pública. Embora os governos do Ceará tenham investido na educação, a violência foi negligenciada. A educação e a própria civilização precisam de estabilidade institucional para se desenvolver, ampliando os níveis de confiança e produtividade. Esse é o desafio para os próximos anos.