Quixeramobim, 06 de julho de 2023, manhã ensolarada no sertão central cearense, logo se espalha nas redes sociais e na imprensa em geral, a triste e difícil notícia que Zé Celso Martinez faleceu em São Paulo, onde morava. Nos deixou fisicamente, mas seu legado será eternizado por tudo que criou. Tinha sofrido queimaduras pelos seu corpo há poucos dias e devido a gravidade não resistiu. Não queríamos que a despedida do maior nome da dramaturgia nacional e criador do Teatro Oficina com a linguagem tropicalista fosse assim, mas infelizmente aconteceu. Até sua morte foi um “espetáculo” marcado pelo simbolismo, pois o fogo sempre esteve presente em sua arte.
Tive a honra e alegria de conhecer Zé Celso em 2007, quando veio com sua trupe do Teatro Oficina Uzina Uzona apresentar o espetáculo “Os Sertões” em Quixeramobim-Ce. Eu, nascido e criado no sertão, nunca tinha frequentado o mundo do teatro, ainda mais de arena a céu aberto.
Fiquei deslumbrado. Conhecer um diretor renomado e tão livre em sua criação artística como Zé Celso, confesso que pela nossa formação cristã opressora ocidental fiquei assustado. Logo pensei, esse homem “é louco”! Essa foi a minha impressão quando tive o primeiro contado com ele em setembro de 2007, na recepção do hotel Veredas do Sertão, após uma entrevista para a então repórter do jornal “O Povo”, Elleuda de Carvalho.
O nosso segundo encontro foi no restaurante Alvorada, Zé Celso estava terminando de jantar com alguns integrantes da Ong. Iphanaq, com o prefeito municipal e alguns auxiliares e membros da produtora do espetáculo que seria realizado em Quixeramobim de 14 a 18 de novembro daquele ano.
Após atender a imprensa retornou pra mesa e nesse momento eu vinha chegando do trabalho, pois ensinava no distrito de São Miguel a noite, em seguida meu amigo Antonio Carlos (Guaru) me reapresentou ao Zé Celso, dizendo que eu era o presidente da Ong. Iphanaq, instituição parceira na realização de “Os Sertões” na cidade onde nasceu Antônio Conselheiro.
Quando sentei ele falou uma frase que até hoje me enche de alegria e sempre me provoca forte emoção. Ficamos frente a frente, ele fixou o olhar em mim e disse: “Você tem uma expressão no sorriso que parece nos conhecer há muito tempo, tem uma beleza profunda. Seu sorriso é maravilhoso!” Foi dessa fala que Guaru criou a narrativa do negro do sorriso maravilhoso.
Segundo ele durante os dias de espetáculo, Zé Celso sempre perguntava. “Onde está o negro do sorriso maravilhoso”? Essa é mais uma de tantas outras brincadeiras e histórias engraçadas desse estimado amigo e irmão.
Zé Celso foi um ser humano da maior expressão de amor e liberdade na arte teatral antropofágica e transgressora que conheci. Por onde passava, assim como foi Antônio Conselheiro, a realidade não seria mais a mesma. Foram homens à frente de seu tempo. Inquietos, criativos, incompreendidos e revolucionários. Como deveria ser a nossa passagem por essa vida, porém, muitas vezes nos falta coragem. Isso em Zé Celso nunca faltou! Desde suas primeiras criações e direções teatrais no período da ditatura civil-militar até os tempos fascistas que ainda vivenciamos na atualidade, sua arte nunca deixou de ser incômoda. Sempre encenou a folia, a orgia e a anarquia, como destacou o jornal Folha de São Paulo.
Nesse breve convívio com Zé Celso e sua companhia, tive meu primeiro contato com teatro e me despertou o interesse de fazer a leitura da obra “Os Sertões” de Euclides da Cunha, o qual realizamos no grupo de Leitura Sertões e Memórias”. Foi ele quem me indicou o livro “Guerra Total de Canudos”, de Frederico Pernambucano de Melo. Sugeriu-me essa obra entre nossas breves conversas, pois, segundo ele, faz uma boa abordagem do tema Canudos/Belo Monte/Antônio Conselheiro. Depois consegui comprar esse livro e realizei a leitura dessa importante obra e daí então, passei a ter um maior interesse pelo tema.
Foi Zé Celso que me abriu as portas de Belo Monte. Lembro bem no último dia do espetáculo em Quixeramobim. Após o encerramento do último capítulo na Arena montada no extinto Quixeramobim Clube, ele repetiu o comentário que tinha feito na primeira visita a terra onde nasceu Antônio Conselheiro em setembro daquele ano. “Quando fui convidado pra vir apresentar ‘Os Sertões’ no Ceará gostaria que fosse em Quixeramobim e daqui seguisse para Canudos. Vamos juntos fazer simbolicamente o percurso de Antônio Conselheiro pelo sertão. E seria muito importante a presença de vocês de Quixeramobim em Canudos durante o espetáculo”, ressaltou.
Diante desses importantes argumentos, ele nos motivou, provocou e convenceu a assistir ao espetáculo “Os Sertões” em Canudos de 28 de novembro a 02 de dezembro de 2007. Começamos então a nos mobilizar para organizar a viagem. Fizemos campanha pela cidade e arrecadamos o dinheiro e fretamos um micro ônibus. Seguimos para Canudos um grupo de 19 pessoas, chegamos no segundo dia de espetáculo.
Que presente Zé Celso me proporcionou. Com essa viagem reiniciamos pela arte a reaproximação Quixeramobim e Canudos. Particularmente desde 2012, estou pelo sertão baiano e sergipano conhecendo os percursos de Antônio Conselheiro e aprendendo com a sabedoria do povo sertanejo, descendentes daqueles e daquelas que conheceram ou viveram a experiência comunitária e de justiça social construída em Belo Monte por Conselheiro e seus seguidores.
Ainda tive o privilégio de reencontrar Zé Celso mais duas vezes. Em 2011 durante a peça o “Banquete” no Teatro José de Alencar em Fortaleza, e em 2016 quando novamente veio a Quixeramobim participar da edição do Conselheiro Vivo daquele ano. Ao terminar sua fala no auditório qual fez questão de dizer que detestou o local, organizou e puxou uma ciranda carnavalesca e festiva pelo centro da cidade como sempre foi sua vida e sua arte.
Zé Celso soube construir uma dramaturgia pautada no amor, na liberdade, na transgressão e na antropofagia durante toda a sua trajetória no teatro. Na abertura do espetáculo “Os Sertões” em Quixeramobim foi realizado um cortejo vindo da periferia (Bairro Depósito), para o centro da cidade via ponte metálica. Ao passar em frente a Igreja Matriz de Santo Antônio, onde Antônio Conselheiro casou com sua prima Brasilina, e que depois na região norte do Ceará lhe abandonou, Zé Celso parou na porta principal e abriu os braços e começou a gritar: Brasilina! Brasilina! O amor é grande e livre demais pra ser julgado por nós pobres mortais! Foi um momento muito emocionante que antecedeu a chegada do cortejo a casa onde nasceu Antônio Conselheiro, local onde seria realizadas algumas falas. Na época, eu estava na presidência da Ong. Iphanaq e quando fui proferir algumas palavras na abertura da programação, foi difícil conter a emoção.
Durante os cinco dias de espetáculo tive o privilégio de participar ou ajudar na produção em Quixeramobim e vivi experiências nunca imaginadas: Treinar jumento no tablado para entrar com o ator em cena, crianças da banda de lata do Assentamento Recreio encenando. Pude observar como em nossa sociedade a hipocrisia e falso moralismo é grandioso.
Todo dia tinha gente criticando a nudez de algumas cenas, mas diariamente estavam na fila para adquirirem ingressos e assistirem outros episódios. Descobri no teatro Oficina que a expressão do olhar é grandiosa, ela nos prende e envolve na magia das cenas na interação dionisíaca do teatro de arena de Zé Celso, sempre foi a maior expressão.
A passagem do Teatro Oficina por Quixeramobim foi uma experiência extraordinária, mexeu com a cidade, não apenas pela grandiosidade, beleza ou críticas à peça, mas também pelo envolvimento e circulação de gente que vinham todo dia de outras cidades para assistir ao espetáculo. A cidade ficou em efervescência cultural, turística durante uma semana. Tinha linha de ônibus exclusiva de Fortaleza a Quixeramobim todo dia para poder apreciar o espetáculo.
Zé Celso é um marco da história do teatro brasileiro, sua criação artística e interação com a plateia despertam curiosidades e questionamentos no público. Na minha opinião, é o maior teatrólogo brasileiro. Tive a oportunidade de conviver com esse mestre de nossa cultura e pude perceber que sua entrega as pesquisas fizeram de suas obras importantes momentos de diálogos com grandes temas da história do Brasil, nos convidando a refletir sobre latifúndio, exclusão, corrupção, racismo, pobreza, reforma agrária, educação, intolerância religiosa, direitos humanos, etc. Ninguém sai do jeito que entrou depois de participar de um espetáculo de Zé Celso. Ele conseguiu colocar na sua arte temas até hoje mal resolvidos em nosso país, como a violência contra os mais pobres, a opressão, a censura e democracia.
José Celso Martinez Corrêa retorna ao Olimpo. Estamos tristes, mas celebramos a alegria e a magia de um ser humano que viveu e amou em plenitude em tudo que fazia, construindo com a liberdade que sempre defendia. Que a chama do fogo que lhe queimou e nos tirou de nosso convívio, nos aqueça a vida pra continuar nos embriagando com o vinho do amor e da arte coletiva que transforma nossas vidas em seres resistentes e lutadores em defesa da cultura, do amor e da vida. Viva Zé Celso Martinez! Viva o amor!
Evoé!
Texto escrito por
Neto Camorim – Historiador, militante cultural e integrante da Ong. Iphanaq